domingo, 15 de abril de 2012

O desafio da Pedagogia Hospitalar

Para suprir a carência da educação de jovens e crianças hospitalizadas ou em tratamento domiciliar, é que desde 1994 a legislação brasileira garante o atendimento deste público especial. A Pedagogia Hospitalar foi regulamentada pelo MEC em 2002, mas ainda são muitos os obstáculos a serem transpostos pelo profissional deste ramo. Sair da escola e entrar no universo hospitalar é algo novo para educadores, pois exige deles conhecimentos e habilidades. Auxiliar no ensino de crianças e jovens enfermos é muito mais do que explicar conteúdos, tirar dúvidas e avaliar estudantes. O professor no ambiente hospitalar também serve como ponte entre profissionais da saúde, família e crianças, minimizando os traumas da internação, por meio de um ensino emancipador, como nos traz a Supervisora Educacional no Município de São Gonçalo – RJ, Rejane Fontes.
Embora se tenha registros do trabalho educacional realizado em hospitais desde 1931 no Brasil, iniciado na Santa Casa de Misericórdia, em São Paulo, cujos arquivos datam do período de 01/08/1931 a 10/12/1932 (MAZZOTTA, 2005), sua definição na política educacional brasileira só chegou em 1994, com a Política Nacional de Educação Especial. Segundo ela, “Classe Hospitalar é um ambiente hospitalar que possibilita o atendimento educacional de crianças e jovens internados que necessitam de educação especial e que estejam em tratamento hospitalar” (BRASIL, 1994, p. 20). Essa definição, ainda muito próxima do conceito de escolarização, indicava apenas uma transposição das atividades realizadas no espaço escolar para o ambiente hospitalar.
Com o intuito de ampliar esta definição, em 2002, o Ministério da Educação (MEC) publicou o documento basilar para esta modalidade de ensino com o título Classe Hospitalar e Atendimento Pedagógico Domiciliar: estratégias e orientações (BRASIL, 2002). Neste documento, entende-se que o aluno da classe hospitalar é o educando cuja condição clínica interfere em sua permanência ou freqüência escolar de forma temporária ou permanente, necessitando de um acompanhamento educacional durante seu processo de hospitalização.
Contudo, este atendimento pedagógico deverá ser orientado pelo processo de desenvolvimento do educando e construção de conhecimento, exercido de forma integrada aos serviços de saúde. Para tanto, a oferta curricular ou didático-pedagógica deve ser flexibilizada, contribuindo para a promoção de saúde e ao melhor retorno da criança e/ou adolescente aos estudos interrompidos.
Observa-se, assim, que a Pedagogia Hospitalar é um trabalho especializado bastante amplo que não se reduz à escolarização da criança hospitalizada. Ela busca levar a criança a compreender seu cotidiano hospitalar, de forma que esse conhecimento lhe traga um certo conforto emocional. Isso lhe pode ajudar a interagir com o meio de uma forma mais participativa.
Mais do que o profissional, o maior parceiro da criança é a outra criança que está ali dentro, que almoça, acorda e passa pelo sofrimento junto com ela. É papel do professor incentivar essa parceria, essa solidariedade, buscar fazer com que a criança enxergue o outro como alguém semelhante a ela. Isso é um processo educativo que não está atrelado diretamente ao conteúdo curricular. Propõe-se uma atividade comum para que duas crianças escrevam uma historinha. É dessa forma que se vai introduzindo sutilmente uma atividade pedagógica sistematizada num contexto de brincadeira. Se houver um livro didático com o corpo humano, o professor pode mostrar para a criança diabética o que é a insulina e para que serve o pâncreas. Esse conhecimento curricular surge “espontaneamente” e tem uma significação autêntica para a vida da criança. Assim, podemos entender Pedagogia Hospitalar como uma proposta diferenciada da Pedagogia Tradicional, uma vez que se dá em âmbito hospitalar e que busca construir conhecimentos sobre esse novo contexto de aprendizagem que possam contribuir para o bem estar da criança enferma.
Se o período de internação da criança no hospital for quinzenal, o que é bastante comum nos hospitais que possuem enfermaria pediátrica, dificilmente o professor irá desenvolver um trabalho escolarizado do tipo proposto pela Classe Hospitalar em seu sentido estrito de escolarização. Não há tempo para o currículo oficial, enquanto a criança tenta se familiarizar com aquele universo, que é completamente estranho e, muitas vezes, assustador. A sugestão da Pedagogia Hospitalar é a de que o professor trabalhe atividades lúdicas de reconhecimento do espaço, de sua doença e de si própria, durante os primeiros quinze dias de internação da criança, no sentido de tranqüilizá-la acerca do ambiente hospitalar. E caso a criança permaneça hospitalizada por mais tempo, o desejo por atividades mais próximas das do tipo escolar irá aflorar quase espontaneamente no universo hospitalar. Pois, o desejo de aprender engendra o desejo de viver junto à criança doente, que vê na escola e na figura do professor, a referência à infância que foi deixada do lado de fora do hospital.
O brincar deve fazer parte da vida de toda criança e a educação é necessária na vida de cada ser humano, por isso, é fundamental a continuidade do desenvolvimento da criança no ambiente hospitalar, pois mesmo hospitalizada continua sendo criança e precisa ter todas as suas necessidades básicas fundamentais atendidas (FONTES, 2005; FONTES & VASCONCELLOS, 2007; VASCONCELLOS & SARMENTO, 2007).
Nem mesmo os pais, no início, têm clareza do que seja a Pedagogia Hospitalar. Com o desenrolar das atividades, eles passam a vê-la de uma forma terapêutica, não de forma pedagógica. Como não há psicólogo no setor pediátrico de muitos hospitais, acabamos assumindo erroneamente essa função, recebendo os pais que nos procuram para dialogar, desabafar e obter conhecimentos. Os médicos, em geral, dão o diagnóstico, usando palavras de difícil compreensão. Com isso, os pais nos procuram para compreender o diagnóstico apresentado.
E essa pode ser também uma via de entrada do professor no hospital. A atuação se dá, então, não somente junto à criança, mas também junto aos pais. O professor faz a ponte entre o discurso oficial, que é o do médico e o discurso do senso comum, que é o dos pais ou responsáveis pela criança. Quando eles se tranqüilizam em relação à doença do filho, passam isso para a criança, o que ajuda no tratamento da doença. Atuando dessa forma, o professor não está fugindo da sua atuação como professor. Pelo contrário, está ampliando a rede de relações dentro do hospital. Mas, apesar disso, ainda existe uma relação complexa entre os professores e os profissionais da saúde.
Alguns profissionais da área da saúde não valorizam a Pedagogia Hospitalar. É verdade que nos últimos anos houve um progresso incontestável, facilitado pelos profissionais da área de Ciências Humanas, como os da Assistência Social e os da Psicologia. Enfermeiros, médicos e nutricionistas, em geral, vêem professores como recreadores, aqueles que promovem brincadeiras com a criança para “passar” o tempo ou para fazer com que ela não dê trabalho. Durante o desenvolvimento de um acompanhamento pedagógico numa enfermaria pediátrica é comum alguns destes profissionais interromperem a atividade, pegarem a criança pelo braço e retirá-la do espaço para fazer exames ou tomar medicação. Muitas vezes, essas ações poderiam esperar por não terem uma hora marcada. A criança sai chorando. Hoje isso acontece com menos freqüência e os profissionais da saúde já perguntam: “Professora, posso tirar fulano?”. Conversando, convencemos a criança, dizendo: “Eu espero você voltar, pode ir lá tranqüilo”. Assim, a criança sai sem chorar.
Como professor, é fundamental que não deixemos que nossa identidade se perca no espaço hospitalar. O professor precisa ser um pesquisador da sua prática, principalmente na Pedagogia Hospitalar, onde há uma pequena produção literária sobre o assunto. Precisa refletir, construir, escrever, para conceituar essa prática. Ele é um professor diferente daquele da sala de aula, porque não está na escola, não está trabalhando com crianças “saudáveis”, que podem fazer tudo a qualquer tempo. Enfim, é isto, do ponto de vista educacional, social e humano, o que denominamos, pesquisamos e acreditamos ser o papel da Pedagogia Hospitalar.
Referências:
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial. Brasília, DF. (Mensagem especial; v. 1) 1994.
______. Classe hospitalar e atendimento pedagógico domiciliar: estratégias e orientações. Brasília: MEC; SEESP, 2002.
FONTES, R. S. A Escuta pedagógica à criança hospitalizada: discutindo o papel da Educação no hospital. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-138, maio/ago. 2005. Disponível em: http://www.anped.org.br. Acesso em: 22 jan. 2007.
______.; VASCONCELLOS, V.M.R. O papel da educação no hospital: uma reflexão com base nos estudos de Wallon e Vigotski. Cadernos CEDES – Educação da criança hospitalizada: as várias faces da pedagogia no contexto hospitalar, Campinas, v. 27, nº. 73, p. 279-303, set./dez. 2007.
MAZZOTTA, M.J.S. Educação Especial no Brasil: história e políticas públicas. São Paulo: Cortez, 2005.
VASCONCELLOS, V.M.R.; SARMENTO, M.J. Infância (In)visível. Araraquara, SP: Junqueira & Marin, 2007.
*Doutora em Educação pela UERJ; Especialista em Regulação de Aviação Civil da ANAC e Supervisora Educacional no Município de São Gonçalo (RJ). E-mail: rejane_fontes@yahoo.com.br.

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